Se houvesse encontrado as palavras certas naquele tempo...
"És um tipo vulgar (e pensar que foste um deus). Tens pouca piada, até me custa a lembrar, o quanto me fazias rir, o coração descompassado e o formigueiro entre as pernas, um humor incendiário que me apetecia rasgar e devorar, num ímpeto pré-histórico. Quando bastava uma pilhéria, uma chalaça, uma laracha. O que escreves, lê-se. É assim mesmo: lê-se. Lê-se bem, como uma receita que queremos tentar, uma notícia de jornal, um anúncio, um letreiro de dentista, um sorriso ao canto da boca, de passagem. Mas pouco mais. Tempos houve em que te achei um quase génio da escrita mundana: vivo, provocador, uma invulgar destreza no entrelaçar de sentimentos proibidos, nos finais inesperados. Afinal, era apenas eu que não te esperava, que não te sabia assim, como és: vulgar, um tudo nada pretensioso, a exibires as letras como se um cachimbo ao canto da boca, um lencinho ao pescoço, um bigodinho cuidadosamente aparado, biqueiras reluzentes, o ego inseguro à espera do afago amoroso de terceiros. Apaixonada, imaginava-te um dom, e sonhava com a fatalidade de honrares a minha existência com o resto dos teus dias de excepção. Hoje, nem por nada quereria o óbvio tédio da tua vida, na minha. Excitava-me, então, a falta de pontuação, de maiúsculas, de vírgulas, de iniciativa, de um pouco de loucura. Uma roleta russa, perigosa, o jogo matreiro no qual descobria os teus significados ao virar de cada frase. Hoje, constato que és previsivelmente simpático, normal, um bocadinho entediante, até. Lamento, não te detesto, como decerto me preferirias: para mal dos teus pecadilhos, apenas me desinteressas. A cor dos teus olhos, afinal, não contém o mar, muito menos o céu: a cor dos teus olhos, não passa de uma composição genética de fortuito bom-gosto."www.umamoratrevido.blogspot.com
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